Sabe quando você é atingido por uma preocupação filosófica urgente, de se indagar a criação do Universo, a quintessência da virtu humana, os recônditos das viagens em espirais pelos labirintos da psique, a origem das espécies, a fisicalidade das cores, a personalidade das coisas, as lamúrias ressonantes da história, os vícios da linguagem metafísica, a exploração da orla do abismo que embala os nossos sonhos, o limiar das mágoas, a leviandade dos disparates antiteologicos, a efemeridade da existência interpessoal, a poesia dos astros, as restrições epistemológicas da sabedoria formal, a consciência ressonante da humanidade, a profundeza do oceano no qual flutua o espectro que separa genialidade da loucura... Sabe?
Seven Idiots é uma tradução sinestésica de todas essas indagações. É tanta informação e tanta bagunça organizada que é impossível se identificar todo som ou ruído que é vomitado em seus ouvidos: As mudanças intensas de rumo e de humor são memoráveis - uma experiência quase exaustiva, mas profundamente recompensadora. E epifânica. E catártica. E todos esse outros adjetivos similares relacionados também.
Ouça sóbrio. Eu não me responsabilizo por bad trips.
Álbum: 55:12 Estilo:Post-rock/slowcore/shoegaze Quando: 2006 Onde: Virginia
Quando certa manhã Lani Romée acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Ao som do chapinhar de suas asas translúcidas, cambaleou o corpo encouraçado até a escrivaninha de seu babélico quarto, acostumando-se gradualmente a respirar por reentrâncias mucosas que descansavam na linha de seu torso. Estendeu seus apêndices grotescos e cascudos, revestidos de cerdas de quitina onde outrora ostentava dedos, e suas dúzias de olhos gelatinosos vislumbraram na tela do computador o software foobar2000 v0.9.5.6 que repetia, em loop, o disco 55:12 de Gregor Samsa.
Sua mente ainda humana lembrou-se do mote da banda: "lento e triste, lento e alegre; mas nunca rápido e qualquer coisa". Encontrou conforto na autenticidade do conceito e, se ainda suportasse cordas vocais na garganta, emitiria um suspiro de satisfação. Estalou as mandíbulas a mimetizar o som minimalista do quarteto musical, a amálgama requintada de post-rock e slowcore, e lamentou não poder mais reproduzir o efeito onírico das vozes que enfeitam as belíssimas canções do disco.
Como as peças de 55:12, Lani Romée, hoje bestializado, sentiu uma labareda tremeluzente a incendiar sua alma, a atear fogo na infinita floresta azul apresentada no início da obra. Digeriu o crescimento climático de cada composição, embalado por cordas de violino e pedais aveludados, a clamar pela liberdade das correias de um estilo restritivo. E como serviçal de Dionísio, ligou os speakers do PC.
Percebeu, horrorizado pela segunda vez desde o despertar vespertino, que sua nova forma animalesca era incapaz de ouvir. Murchou em uma concha de depressão e arrastou-se como o verme que era até a janela. Seus olhos, gotas de café a refletir o sol da manhã, falharam na investida de buscar esperanças e sonhos no silêncio de um Gregor Samsa mudo. Escancarou as persianas, a encarar o eco do abismo de Antonin Artaud no asfalto quinze andares abaixo. Se ainda suportasse cordas vocais na garganta, emitiria um suspiro de satisfação.
Eu não tenho saco pra postar bastante. E não é como se eu fizesse muito da vida também, fico aí vagabundeando, ao léu, à deriva - mas acontece que as forças produtivas me escapam e eu sinto uma necessidade angustiante de não fazer absolutamente nada. Não sobra ânimo pra postar.
Aí eu chego aqui, reunindo toda a força de vontade que eu invoco dos meus ancestrais, e posto um disco ultra bacana como o do Tallest Man on Earth. Bato o pó das mãos e penso comigo mesmo: "É isso aí, até daqui uns meses, Yeswehavebananas!" e volto à minha confortabilíssima e rotineira falta de afazeres, sem dever nada a ninguém, de consciência tranquila e alma lavada.
Até que em uma situação extraordinária eu me vejo obrigado a voltar pra cá tão cedo. Essa situação extraordinária se chama Mount Wittenberg Orca.
Não vou gastar dedo apresentando a Björk pra ninguém, tem gente que ama, tem gente que odeia, tem gente que acha que não fede nem cheira, mas a verdade é que Björk é Björk e ela é foda. O importante é explicar quem são os Dirty Projectors, então vamos lá: é uma banda foda. Agora que todo mundo se conhece, vamos falar do disco: o disco é foda também.
Mas não é só foda. É bem foda. É uma barca em viagem etérea, quase imaterial, carregada por ondas de notas vocalizadas pelos integrantes do projeto: a instrumentalização é minimalista, sutil, dando espaço para o caráter mais orgânico dessa obra - composto principalmente por harmonias rechonchudas de vozes e cantorias. Como disco conceitual a narrar um bonito diálogo entre uma menina e uma mãe baleia (e seus filhotes), Mount Wittenberg Orca é direto ao ponto, e as interpretações dos ethos dos personagens são convincentes... e dão gosto de ouvir. É coisa fina, muy fina, cabrón.
Dirty Projectors + Björk - Mount Wittenberg Orca (2010)
O negócio do Jeff Buckley é que ele é o Elvis dos anos 90: tipo o remake sombrio do rei do rock, o "Dark Knight" do topetudo. Um cara bonitão, de voz melodiosa e marcante, que reinventou o rock em sua devida época e, tragica e infelizmente, morreu cedo demais.
O negócio de The Tallest Man on Earth é que ele é o Jeff Buckley do Bob Dylan.
Álbum: Forgiveness Rock Record Estilo:Indie Rock (Baroque Pop para os babacas) Quando: 2010 Onde: CANADIA
Forgiveness Rock Record começa exatamente como começa o disco anterior, Broken Social Scene. É uma sensação nostálgica, os barulhinhos, os timbres, a bateria. A primeira faixa é como rever um álbum de fotografia relativamente velho, da época da escolinha, do colégio, bate aquela saudade, você se encanta porque começa a lembrar de como você gostava daquela época, como era melhor do que agora, como você hoje em dia é uma pessoa miserável e sem amigos, não é ninguém na noite, que os seus melhores dias já passaram.
Mas aí, de repente, enquanto você folheia o álbum, as fotos vão ficando cada vez mais antigas, degradê, sepia, preto e branco, vão mostrando coisas do passado que você nem viu nem prestou atenção na época mas NOSSA como era legal, só na tentativa de delícia, que coisa mais maravilha, você se vê bebê sorrindo e fazendo cara de bunda e mordendo uns bagulhos nada a ver, pegando lombriga e sua mãe achando o maior barato, dando risada, achando bonitinho e batendo palma, mas você também "nem te ligo" porque vermífugo tá aí pra isso.
A partir daí o álbum começa a ficar maluco, as fotos ainda que fiquem mais antigas e mostrem coisas mó velhas que você nem lembrava e nem teria que lembrar começam a ficar coloridas, tipo com uns retoques mucho lóki, tudo colorido, uns photoshop, vai aparecendo aqueles laminados que tinha em figurinha de futebol especial que dá uns efeitos meio holografia, meio 3D, algumas fotos começam a mexer e adquirir vida própria que nem aqueles quadros do Harry Potter, seu pai com cabelo dos anos sessenta dançando break no chão, sua mãe fazendo golpe de kung fu na tábua de passar roupa, de repente passa o batman correndo só de cueca e meia, e quando você já está quase esquecendo que sua vida é uma desgraça e ninguém te ama o disco acaba.
Aí você pode continuar sendo um cretino, um desgraçado, um amargurado carrancudo desgostoso com a vida... Ou dar replay.
Álbum: In the Heights (OST) Estilo:Musical Quando: 2008 Onde: BROADWAY
Sou ardente fã de musicais. Muita gente odeia musicais e eu não entendo o motivo. Eu recebo exemplos como justificativa, o que não satisfaz porque eu podia muito bem citar Matrix e Donnie Darko pra dizer que não gosto de cinema, citar Lost e Big Bang Theory pra dizer que seriado não presta e lembrar de Bonde do Rolê ou Bon Jovi pra falar que música é uma expressão artística pobre. Tá, Grease é um cocô, Noviça Rebelde é sem sal, Hair é pior ainda e Rent é a maior merda já feita em um palco - mas existem jóias como Les Miserables, Sweeney Todd, The Music Man, Chicago e por aí vai. É uma espécie distinta de midia que precisa usar a música pra contar a história, não só juntar meia dúzia de cantores nota 6 pra cantar umas canções nada a ver.
Ouso dizer que In the Heights é, se não o melhor, um dos melhores musicais já produzidos em toda a história. A trama é simples e segue três dias na vida dos moradores de um gueto latino, o famoso Washington Heights. Mas o que faz da apresentação uma experiência fantástica são as músicas: um misto de salsa, soul, pop e hip-hop muito bem planejados, com temas que retornam e perseguem os personagens que representam, medleys muito bem pensados, associações musicais, duelos contrapontuais recorrentes e demais recursos oratórios no serviço à narrativa.
O crânio por trás disso tudo é Lin Manuel Miranda, ex-professor de língua inglesa, descendente de porto-riquenhos e rapper. É isso aí mesmo, rapper, e um dos melhores que eu já ouvi. Recentemente trabalha em um disco conceitual sobre a vida de Alexander Hamilton, primeiro tesoureiro dos Estados Unidos e "founding father" - pra quem tiver interesse, a trilha sonora original de In the Heights é por si só um disco conceitual: Eu nunca assisti à peça e mesmo assim compreendo toda a história, que é talentosamente destrinchada pelas músicas do disco. Precisa prestar atenção já que você não tem auxílio visual na empreitada, mas qual disco conceitual não é assim?
Pra quem não se interessa, as músicas são o bixo e isso basta.
Álbum: Have One on Me Estilo:New Weird America Quando: 2010 Onde: Nevada City, California
Uma coisa que eu não entendo são os fãs do Tony da Gatorra. Lembro-me de um show do dito cujo que eu atendi junto com uns amigos e alguns não tão amigos: Passei a apresentação toda me perguntando o motivo de tanta gente urrar de êxtase durante as horripilantes "canções" do velho hippie. Quando perguntado sobre meu veredito ao final da noitada, respondi um humilde: "É engraçado, mas é uma merda." Esperei compreensão, mas essa não veio - Fui recebido com olhares ofendidíssimos de indignação.
O cara toca mal (E isso que ele inventou aquela porcaria de instrumento), canta pior ainda, as letras são carregadas de um liricismo político muito terceiro mundo, muito república da banana. E o pior é que não é nada que necessite de um grande conhecimento musical ou senso crítico pra perceber. Não é que nem tentar convencer fã do John Lennon de que o cabeludo era incompetente; é algo evidente mesmo. Não tem segredo pra gostar, não tem qualidade oculta como o Serginho Moreira, não tem nada mesmo. O cara é péssimo em tudo e é uma merda, só isso.
Joanna Newsom também é ridícula. A voz de gralha, as letras pretensiosas, as parcas habilidades na harpa cujas falhas tornam-se ainda mais acentuadas em suas performances ao vivo. Quando eu ouvi Ys pela primeira vez me enchi de ódio tão profundo, uma espécie de raiva irracional, que tive vontade até de bater nela. Mas quer saber? Joanna Newsom é a melhor coisa que já aconteceu na história da música popular desde os Beatles e eu nem estou brincando.
As letras são bem porcaria, entufadíssimas, quase arrogantes. Mas são sinceras. A maneira de cantar é uma desgraça mesmo, mas se fosse diferente deixaria sua música ordinária. As habilidades no exótico instrumento podem não ser virtuosíssimas, mas são carregadas de sentimento. E essas qualidades são apenas pilastras que sustentam a maior de suas virtudes: O talento inspiradíssimo para composição.
Quando quis bater em Joanna não foi por achá-la uma indolente patranheira - foi pela mais viciosa e honesta inveja. Dificilmente uso o termo "gênio" em sua acepção autêntica, título reservado a pessoas como Mozart ou Nikola Tesla... Mas a harpista é digna do mérito. Não tenho vergonha de admitir que, além do medley final do Abbey Road dos Beatles e do formidável dueto Bowie/Mercury em Under Pressure, o único músico que me fez chorar de genuina apreciação foi Joanna Newsom. Ela pode ser uma merda, mas também é a melhor.
Por que baixar?! Eu ainda não ouvi, então a gente vai ouvir junto. Mas Milk-Eyed Mender foi superado em dobro pelo Ys, e se Have One on Me for metade do que o primeiro foi, acho que já temos aqui o melhor disco de 2010.